quarta-feira, 27 de março de 2019

O estagiário que atua no serviço público, ainda que transitoriamente, remunerado ou não, se enquadra no conceito legal de agente público preconizado pela Lei 8.429/1992



RECURSO ESPECIAL Nº 1.352.035 - RS (2012?0231826-8)
RELATOR : MINISTRO HERMAN BENJAMIN
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RECORRIDO : MICHELE PIRES XAVIER
ADVOGADO : ANDRÉ DA COSTA COI

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator): Trata-se de Recurso Especial interposto, com fundamento no art. 105, III, "a" e "c", da CF, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região às fls. 468-480 assim ementado:
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ESTAGIÁRIO. QUALIDADE DE AGENTE PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE.

1. A atividade de estágio não se equipara a mandato, cargo, emprego ou função pública, sendo precipuamente educacional.

2. Estagiário não pode ser considerado agente 'público e, por conseguinte, sujeito ativo de atos de improbidade.

3. Ainda que criminosa a conduta do estagiário, a improbidade está na conduta de quem lhe incumbiu deveres típicos de agente público, pois conferiu responsabilidades 'a quem, ao menos aos olhos da Lei de Improbidade, não poderia responder.

O recorrente afirma que houve, além da divergência jurisprudencial, ofensa aos artigos 2º e 3º da Lei 8.429?92, sob o argumento de que o estagiário está sujeito à responsabilização por ato de improbidade.
Contrarrazões às fls. 507-520.

O Recurso Especial foi admitido à fl. 521.

Parecer do Ministério Público Federal opinando pelo provimento do Recurso Especial às fls. 533-540.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.352.035 - RS (2012?0231826-8)


VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN (Relator): Cuida-se, na origem, de Ação de Improbidade Administrativa proposta pelo Ministério Público Federal, ora recorrente, contra Michele Pires Xavier, ora recorrida, objetivando a condenação por ato ímprobo, praticado quando a recorrida era estagiária da CEF, consistente na apropriação de valores que transferiu da conta de um cliente, utilizando, para tanto, senha pessoal de uma funcionária da CEF, auferindo um total de R$ 11.121,27 (onze mil, cento e vinte e um reais e vinte e sete centavos).
O Juiz de 1º Grau julgou o pedido procedente.

O Tribunal a quo negou provimento aos Embargos Infringentes do ora recorrente, e assim consignou na decisão:

Com a vênia do n. prolator do voto vencido, tenho que deve ser mantido o acórdão atacado.

Na hipótese, ainda que, reprovável a conduta da fé, fato é que a natureza de sua relação com a administração é precipuamente educacional, não O sendo menos reprovável a circunstância de que tenha, por autorização superior, acumulado poder de, na prática, dispor livremente dos depósitos dos correntistas.

Efetivamente, deve-se ter em conta que a Lei da Improbidade Administrativa tem como escopo, inclusive, o ordenamento e a moralização do serviço público.

Por isso mesmo, não se pode considerar probo o contexto em que um estagiário possui poder semelhante ao de um agente público, reclamando cautela a imposição das reprimendas cominadas à improbidade administrativas a eventual excesso do estagiário.

De fato, a conduta da ré foi criminosa, mas irregular (e improbo) foi o comportamento do agente público que deu a ela o poder do qual ela se valeu para delinquir, pois conferiu responsabilidades a quem, ao menos aos olhos da Lei de Improbidade, não poderia responder.

Ante o exposto, voto por negar provimento aos embargos infringentes. (fls. 476-477).

O parecer do Parquet Federal exarado pelo Subprocurador-Geral da República Dr. Moacir Guimarães Morais Filho, às fls. 533-540, bem analisou a questão:

1. Administrativo. Ação Civil Pública. Recurso Especial. Improbidade Administrativa. Estagiária. Equiparação a agente público. Possibilidade.

2. A ré reputa-se a condição de agente público, tendo em vista que foi contratada para desempenhar atividades junto a administração pública na Caixa Econômica Federal, devendo esta responder pelos atos de improbidade previstos na Lei 8.429?92.

3. Parecer do MPF

(...)

10. A ré reputa-se a condição de agente público, tendo em vista que foi contratada para desempenhar atividades junto a administração pública na Caixa Econômica Federal, devendo esta responder pelos atos de improbidade previstos na Lei 8.429?92. Os artigos 2º e 3º da Lei
8.429/92 definem agente público para efeitos da Lei de Improbidade Administrativa. Verbis :

Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.

Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.

11. Aplica-se ao caso em questão, os dispositivos legais mencionados.

12. No tocante à divergência jurisprudencial, o recorrente demonstrou de forma satisfatória, as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados, com indicação da similitude fático- jurídica entre eles. Realizou o necessário cotejo analítico entre o acórdão recorrido e os arestos trazidos a confronto. Cumpriu os requisitos legais e regimentais (art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI?STJ).

13. A jurisprudência desse Tribunal Superior é pacífica quanto ao conceito de agente público e sua abrangência.

“RECURSO ESPECIAL. PENAL. ARTS. 71 E 155, § 4º, CP. FURTO QUALIFICADO. CONTINUIDADE DELITIVA. BOLSA FAMÍLIA. SAQUES FRAUDULENTOS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CONDUTA TÍPICA PERPETRADA CONTRA PROGRAMA ESTATAL QUE BUSCA RESGATAR DA MISERABILIDADE PARCELA SIGNIFICATIVA DA POPULAÇÃO. MAIOR REPROVAÇÃO. CONTINUIDADE DELITIVA. NÚMERO DE INFRAÇÕES IMPLICA MAIOR EXASPERAÇÃO DE PENA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211?STJ.

1. Estagiário de órgão público que, valendo-se das prerrogativas de sua função, apropria-se de valores subtraídos do programa bolsa-família subsume-se perfeitamente ao tipo penal descrito no art. 312, § 1º, do Código Penal – peculato-furto –, porquanto estagiário de empresa pública ou de entidades congêneres se equipara, para fins penais, a servidor ou funcionário público, lato sensu, em decorrência do disposto no art. 327, § 1º, do Código Penal.(...)

3. Indevida a incidência do princípio da insignificância em decorrência de duplo fundamento: primeiro, o quantum subtraído, qual seja, R$ 2.130,00 (dois mil, cento e trinta reais), não pode ser considerado irrisório; e, segundo, além de atentar contra a Administração Pública, o delito foi praticado em desfavor de programa de transferência de renda direta – Programa Bolsa Família – que busca resgatar da miserabilidade parcela significativa da população do País, a tornar mais desabonadora a conduta típica.

4. Na continuidade delitiva, leva-se em consideração o número de infrações praticadas pelo agente ativo para a exasperação da pena (art. 71 do CP).

5. Ausência de prequestionamento. Súmula 211?STJ.

6. Recurso especial improvido (Resp 1.303.748-AC - MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR - Data do julgamento:25?06?2012; Dje:06?08?2012 …........................................................................................
…........................................................................................
ADMINISTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE. CONCEITO E ABRANGÊNCIA DA EXPRESSÃO "AGENTES PÚBLICOS". HOSPITAL PARTICULAR CONVENIADO AO SUS (SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE). FUNÇÃO DELEGADA.

1. São sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa, não só os servidores públicos, mas todos aqueles que estejam abrangidos no conceito de agente público, insculpido no art. 2º, da Lei n.º 8.429?92.

2. Deveras, a Lei Federal nº 8.429?92 dedicou científica atenção na atribuição da sujeição do dever de probidade administrativa ao agente público, que se reflete internamente na relação estabelecida entre ele e a Administração Pública, superando a noção de servidor público, com uma visão mais dilatada do que o conceito do funcionário público contido no Código Penal (art. 327).(...) 4. Imperioso ressaltar que o âmbito de cognição do STJ, nas hipóteses em que se infirma a qualidade, em tese, de agente público passível de enquadramento na Lei de Improbidade Administrativa, limita-se a aferir a exegese da legislação com o escopo de verificar se houve ofensa ao ordenamento (...).

7. Recursos parcialmente providos, apenas, para reconhecer a legitimidade passiva dos recorridos para se submeteram às sanções da Lei de Improbidade Administrativa, acaso comprovadas as transgressões na instância local.
(Resp 495.933-RS, MINISTRO LUIZ FUX, PRIMEIR TURMA, Data do Jujgamento 16?03?2004, Dje 19?04?2004).”

Ante o exposto, o MPF opina pelo conhecimento e provimento do recurso especial.

É o parecer.

No mais, o conceito de agente público, constante dos artigos 2º e 3º da Lei 8.429?1992, abrange não apenas os servidores públicos, mas todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função na Administração Pública.

Assim, o estagiário que atua no serviço público, ainda que transitoriamente, remunerado ou não, se enquadra no conceito legal de agente público preconizado pela Lei 8.429?1992.


Nesse sentido:


ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR. ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DA FUMUS BONI IURIS E DO PERICULUN IN MORA.

1. A atribuição de efeito suspensivo a recurso especial pendente da demonstração inequívoca da presença, concomitante, dos requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, evidenciados, respectivamente, pela possibilidade de êxito do recurso especial e pela urgência na prestação jurisdicional.

2. O enquadramento do estagiário no conceito de agente público, para fins de sua submissão à Lei n. 8.429/1992, depende das funções que, de fato, estava a exercer, por ocasião do ilícito que praticou. É desinfluente, assim, o fato de, dentre suas atribuições, não haver possibilidade de tomar decisões.

3. No caso, está consignado nos autos que ele tinha acesso a senha que legitimaria operações que só o empregado da Caixa Econômica Federal poderia realizar, o que, em exame preliminar, denota que, transitoriamente, em razão de seu vínculo com a CEF, exerceu, de forma ilícita, função que, embora estranha a suas atribuições, contrariou os princípios da administração pública. Assim, não se verifica a "fumaça do bom direito".

4. O recebimento da inicial da ação de improbidade, com sua regular tramitação, não é suficiente à caracterização do periculum in mora.

5. Agravo regimental provido para revogar a atribuição do efeito suspensivo conferido ao recurso especial.
(MC 21.122?CE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p? Acórdão Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe 13?03?2014)

Ademais, as disposições da Lei 8.429?1992 são aplicáveis também àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma, direta ou indireta, pois o objetivo da Lei de Improbidade é não apenas punir, mas também afastar do serviço público os que praticam atos incompatíveis com o exercício da função pública.
Diante do exposto, dou provimento ao Recurso Especial e determino a remessa dos autos para o Tribunal de origem, a fim de prosseguir no julgamento.
É como voto.




quarta-feira, 20 de março de 2019

A polêmica do chamado direito de protocolo na legislação urbanística


Por Rodrigo Cury Bicalho

Com as constantes alterações da legislação urbanística, inclusive por revisão dos planos diretores e normas de zoneamento, ganhou destaque a polêmica do chamado direito de protocolo. A questão reside em admitir, ou não, que os projetos protocolados ao tempo da lei anterior possam ser analisados e aprovados de acordo com os ditames da lei vigente quando do protocolo.

Com intuito de regulamentar a matéria e viabilizar uma transição normativa menos impactante, considerando os prazos necessários para licenciamento da obra, a própria lei nova deve prever a possibilidade de que os projetos em trâmite possam ser aprovados de acordo com a lei anterior, vigente por ocasião do protocolo. Citamos como exemplo a cidade de São Paulo, cujas sucessivas leis de zoneamento e planos diretores trazem esse dispositivo desde a Lei 7.805/1972, repetido na Lei 13.885/2004, na Lei 16.050 (PDE de 2014) e, finalmente, na Lei 16.402/2016 (atual Lei de Zoneamento), em seu artigo 162.

Entretanto, há diversas vozes que se levantam contra esse direito, com alegações variadas, sendo que os respectivos dispositivos do PDE e Lei de Zoneamento paulistanas são objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 2028122-62.2018.8.26.0000), promovida pelo Ministério Público, por suposta infringência a princípios da Constituição estadual.

Como todo o respeito às opiniões contrárias, não existe tal inconstitucionalidade no direito de protocolo previsto em lei. Como é cediço, nenhum princípio da Constituição, seja ela estadual ou federal, pode prevalecer de forma absoluta sobre os demais, devendo ser analisados em seu conjunto, de forma harmônica e em atendimento à proporcionalidade, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal (RE 732.686, j. 19/10/2017 e ADPF 130, j. 30/4/2009, p.177).

É preciso levar em conta que a matéria é conhecida há muitos anos, tendo inclusive o Ministério Público se insurgido, com a devida razão, contra abusos praticados com base no direito de protocolo estabelecido na Lei Municipal 13.885/2004, quando foram realizadas posteriormente alterações substanciais em projetos protocolados na lei anterior. Tal questionamento levou ao aperfeiçoamento das leis subsequentes, que hoje restringem severamente as hipóteses de alteração de projeto.

Na verdade, há um paradoxo nas alegações de que o legislador não poderia estabelecer o direito de protocolo. Isso porque a norma que cria os novos parâmetros urbanísticos é a mesma que estabelece o direito de protocolo, ou seja, as regras derivam da mesma competência legislativa (Câmara Municipal). Ora, se o legislador pode, com o devido quórum regulamentar, criar normas mais restritivas ou permissivas, alterar substancialmente ou em pouca monta as regras vigentes, bem como fixar-lhe a data de vigência, como poderia ser impedido de regrar a transição? Ora, está se combatendo quem fez o menos, quando poderia fazer o mais.

Além disso, o direito de protocolo é típico instrumento vocacionado a sanar discussões sobre direito intertemporal, da maneira assemelhada à vacacio legis, prevista em nosso ordenamento desde 1942, ou ainda ao princípio da anterioridade fiscal. De fato, é um instituto que tem por corolário dar previsibilidade aos cidadãos, ao pretenderem construir ou empreender.

Não se trata, também como se afirma, de proteção ao empreendedor imobiliário. Veja-se que é necessário planejamento para se promover uma edificação, seja um prédio residencial, hospital, universidade ou escola. Via de regra, após intensa pesquisa, é preciso adquirir o terreno, cujo preço é fixado em função, principalmente, do que nele pode ser edificado (potencial construtivo). Posteriormente, o projeto é submetido à aprovação, tudo com base na legislação vigente, e pode tramitar por mais de um ano, devido às diversas secretarias e departamentos a que se submete (habitação, meio ambiente, transportes, saneamento etc.). Caso, nesse meio tempo, ocorra mudança na lei que inviabilize o projeto pretendido, seria situação absolutamente injusta que o proprietário viesse a perder seu projeto, após todo o investimento realizado e sem que a isso tenha dado causa. Em outras palavras, sem o direito de protocolo, pode ser inviável a edificação pretendida (hospital, edifício, universidade etc.) para a qual o imóvel foi adquirido.

Haveria, ainda, possível violação aos princípios da impessoalidade e isonomia da administração, na medida em que dois munícipes podem ter protocolado na mesma data projetos semelhantes, baseados na mesma lei, porém apenas um deles ter seu projeto aprovado, em virtude de o outro ter enfrentado situações burocráticas, estranhas à sua ingerência, que retardaram sua aprovação.

Agrava esse quadro a exigência do artigo 40 do Estatuto da Cidade, que obriga a revisão periódica dos planos diretores e por consequência leva às mudanças da lei de zoneamento, de parcelamento do solo e outras. Sem o direito de protocolo, a insegurança para construir seria absoluta, podendo levar mesmo à paralisia de novos projetos na cidade, todas as vezes em que se iniciarem os debates sobre eventual mudança legislativa.

Por tais razões, acerta o legislador ao criar a norma de direito de protocolo, desde que bem definida e com os devidos limites regulamentados, como instrumento de segurança jurídica e de desenvolvimento social.

terça-feira, 19 de março de 2019

sexta-feira, 15 de março de 2019

Controle das entidades descentralizadas da administração pública



Por Fabrício Motta

Dominação, subordinação, comando, limitação, fiscalização, supervisão, verificação, exame, constatação. Esses são alguns significados comumente ligados, de forma direta ou indireta, ao substantivo controle. Controlar implica necessariamente interferir na liberdade de outrem, em maior ou menor escala.

Na administração pública, as coisas funcionam mais ou menos dessa forma, de acordo com o perfil ditado pelas normas — princípios e regras — que fundamentam e condicionam toda atuação do poder público. Esse perfil do controle será o objeto deste artigo diante de uma notícia e um ato normativo recentes.

A notícia se refere à iniciativa do Ministério do Meio Ambiente (MMA) de criar órgão de conciliação “com poderes para analisar, mudar o valor e até anular cada multa aplicada pelo Ibama por crimes ambientais”[1]. Segundo a notícia, o novo órgão teria o poder de decidir a respeito das multas aplicadas, sendo que os prazos processuais ficariam suspensos até a decisão. Por outro lado, o ato normativo é a Portaria 40, de 18/2/2019, da Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral, órgão do Ministério das Minas e Energia. Os artigos iniciais da portaria determinam:

“Art. 1º A ANM deverá encaminhar à SGM todos os atos normativos expedidos para fins de regulação de política pública do setor mineral, de forma que possam ser avaliadas sua adequação, conveniência, oportunidade e pertinência temática, inclusive para fins das devidas correções que se fizerem necessárias pelo Ministério de Minas e Energia, no campo de sua competência. Art 2º O encaminhamento dos atos normativos a esta SGM deverá observar-se independentemente da publicação do ato e antes mesmo de sua divulgação pública”.

A notícia faz crer que se estuda uma modalidade de controle do ministério com relação às atividades do Ibama, autarquia federal. A portaria, ato normativo referido, trata exatamente da mesma questão com relação às atividades de uma agência reguladora, autarquia — por definição — com maior grau de autonomia e independência técnica.

A relação jurídica de controle pressupõe a competência de uma estrutura para verificar a conformidade da atuação de outra com normas preexistentes. Nada há de incomum com relação à possibilidade de controle dos entes que exercem atividade descentralizada — mais que direito ou técnica de administração, trata-se de dever do Estado inato à descentralização administrativa.

A chamada tutela administrativa — materializada, na esfera federal, no instituto da supervisão ministerial — é a “atividade exercida pelo Estado, por intermédio dos órgãos encartados em sua Administração Direta, incidente sobre entidade da Administração Indireta, disciplinada pela lei e sujeita a regime de direito público, com o objetivo de controlar e fiscalizar sua atuação no tocante à consecução das finalidades públicas que justificaram sua criação”[2].

A descentralização é uma técnica de organização administrativa condicionada pelo princípio da legalidade. Há necessidade de lei para criar ou autorizar que se crie pessoa jurídica e se lhe atribua competência para desempenhar atividades originalmente afeitas ao ente político. Em consequência, as características, os instrumentos e os limites da tutela devem ser previstos em lei, não sendo extraídos implicitamente da relação jurídica entre os entes envolvidos. Enquanto a relação de hierarquia admite a existência de uma subordinação geral, contemplando a utilização de instrumentos mais amplos implícitos na relação jurídica, a tutela é dependente de expressa autorização e delineamento pelo legislador. Há uma relação hierárquica entre um ministério e uma secretaria de sua estrutura; não há hierarquia, por outro lado, entre ministérios e entidades descentralizadas, como autarquias. Essas razões inspiram a doutrina a pontificar, com acerto, que a relação de controle administrativo das entidades descentralizadas não se presume, mas deve ser verificada nos limites da lei.

Existindo competências e finalidades específicas que justificam a criação de diferentes entidades descentralizadas, há necessidade de regimes também específicos de controle ao lado da possível existência de um regime geral, contendo instrumentos aplicáveis à generalidade das situações. Os controles imaginados para incidirem sobre as pessoas de direito público, por exemplo, não devem ser os mesmos voltados para a atuação das pessoas de direito privado. De nada adianta criar uma entidade em razão da necessidade de autoadministração, buscando melhor realização de determinadas atividades, se na prática for submetida a controles e ingerências que aproximem seu vínculo com o poder público da hierarquia: tratar entidades como órgãos ou empresas estatais como se fossem autarquias, por exemplo.

Voltemos à notícia veiculada, tecendo considerações em tese, sem acesso ao teor do provável futuro ato normativo noticiado. A possibilidade da criação de órgão administrativo pertencente à administração direta, para interferir em ato editado por entidade autônoma da administração indireta, necessita de lei: isso decorre do pelo simples fato de que as competências da autarquia nascem da lei. Em se tratando de competência revisora para anulação de atos administrativos, excessiva amplitude é incompatível com o princípio da legalidade — anular é, por definição, retirar do mundo jurídico atos praticados com vícios, individualmente considerados. Não se está fazendo qualquer juízo contrário a ajustes consensuais ou substitutivos de sanções, mas, sim, apontando a incongruência — e possível vício de legalidade — de modelo de controle que se estruture dessa forma.

Quanto à portaria antes referida, convém anotar que a Lei 13.575/17 criou a Agência Nacional de Mineração (ANM), integrante da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério de Minas e Energia. A lei atribui à ANM competências voltadas à finalidade de promover a gestão dos recursos minerais da União, bem como a regulação e a fiscalização das atividades para o aproveitamento dos recursos minerais no país. Os incisos do artigo 2º atribuem à ANM diversas competências normativas voltadas ao alcance da finalidade precípua indicada.

A lei impõe à ANM o dever de observar e implementar as orientações e diretrizes fixadas no Código de Mineração, na legislação correlata e nas políticas estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia. Ainda assim, é difícil sustentar que exista amparo legal para estabelecer, por portaria, juízo de controle da “adequação, conveniência, oportunidade e pertinência temática, inclusive para fins das devidas correções que se fizerem necessárias pelo Ministério de Minas e Energia”. A portaria trata somente do dever de encaminhar os atos normativos, é verdade, mas deixa claramente exposto o entendimento de que o ministério poderá corrigir atos editados com fundamento em lei. Em sendo a portaria ato infralegal, destinado à organização e procedimentos administrativos, é de se perguntar qual seria o fundamento legal dessa competência do ministério.

Sem maiores aprofundamentos com relação à legalidade do ato, a maior estranheza reside justamente no paradoxo dos modelos organizativos de descentralização: qual o sentido em criar uma agência reguladora, com maior grau de autonomia, independência técnica e campo normativo próprio e permitir a revisão de seus atos por um ministério? Se assim for, talvez seja melhor transformá-las logo em departamentos ou secretarias.

[1] https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/02/ministerio-do-ambiente-quer-nucleo-com-poder-de-anular-multas-do-ibama.shtml
[2] MOTTA, Fabrício. Administração direta e indireta. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício. Tratado de Direito Administrativo. Vol.2: Administração Pública e servidores públicos. São Paulo: Thomson Reuters, 2014.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Estado é quem deve indenizar cidadãos por erros de cartórios, decide Supremo

Por Ana Pompeu

Por maioria, os ministros do Supremo Tribunal Federal definiu que a responsabilidade por danos causados a terceiros por erros cometidos por cartorários é do Estado. Nesta quarta-feira (27/2), o Plenário definiu que quem tem o dever de indenizar, nesses casos, é o Estado.

Como a análise foi feita no julgamento de um recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, o colegiado ainda fixou tese em que ficou definido que a demanda deve ser proposta contra o Estado e o Estado tem o dever de regresso sob pena de improbidade administrativa.

O Plenário deu início ao debate sobre o tema na manhã desta quarta, em sessão extraordinária. À tarde, na volta dos trabalhos, em sessão ordinárias, o colegiado foi tomado por debate sobre a melhor interpretação e solução sobre o caso.

Mais cedo, na abertura do julgamento, em quatro votos, três teses foram levantadas: do relator, ministro Luiz Fux, seguido do ministro Alexandre de Moraes, e que acabou vencedora, a do ministro Luiz Edson Fachin, segundo a qual os cartorários deveriam assumir responsabilidade sobre os próprios atos desde que são agentes públicos mas delegados e em regime especial, e a do ministro Luís Roberto Barroso, para quem a decisão questionada deve prevalecer porque segue a jurisprudência, mas esta deveria ser revista: o Estado não deveria arcar com ônus se não conta com as receitas dos serviços.

O recurso foi interposto pelo estado de Santa Catarina contra acórdão do Tribunal de Justiça local que entendeu que o Estado, na condição de delegante dos serviços notariais, responde objetivamente pela reparação de tais danos em decorrência do parágrafo 6° do artigo 37 da Constituição Federal. O Supremo manteve a decisão.

A ministra Rosa Weber, ao abrir a sessão da parte da tarde e acompanhar o relator, ministro Luiz Fux, ressaltou que há a garantia do direito de regresso do Estado contra os cartorários na hipótese de responsabilidade subjetiva. "Aí teria de ser informada, nesse caso, por dolo e culpa."

Ela afirmou enxergar, no caso, responsabilidade solidária. "Então, não há nada que impeça que se demande Estado e de cartorários, ou exclusivamente do Estado. Basta a comprovação de nexo de causalidade entre o ato e o prejuízo", apontou. Conforme ênfase dada pela ministra Rosa Weber, quando o cidadão procura serviços cartorários, ele está se valendo de serviço de natureza pública. "Não se pode viver em sociedade se não tiver os atos de sua vida objeto de registro", disse.

Na mesma linha, a ministra Cármen Lúcia deu mais destaque ao entendimento de que se deve ser obrigatório ao Estado o regresso de culpa ou dolo ao agente. "Mantenho decisão do tribunal no sentido de ser possível e responsabilizando o Estado de Santa Catarina sem embaraço de que possa ser acionado também o agente e sem embargo de rediscutirmos o tema em outro momento. Tenho sempre enfatizado que é obrigatório o regresso de dolo ou culpa", disse.

O ministro Ricardo Lewandowski afirmou ter mudado de posição ao acompanhar o debate promovido pelos colegas em Plenário. "Precisamos ouvir os argumentos para firmar convicção. Depois dos debates, acabo optando pela solução do relator. A jurisprudência reafirma aquilo que está contido no art. 236 da Constituição Federal, que assenta que os serviços notariais e de registros são exercidos por particulares, mas por delegação do Estado. Então, em última análise, o Estado é responsável. É uma atividade submetida ao regime de direito público", explicou. Para ele, é importante anotar que se trata de serviço obrigatório ao particular, que não pode fugir de emitir certidão de nascimento, transferir propriedade.

RE 842.846

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

RESPONSABILIDADE OBJETIVA. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. NEXO CAUSAL E DANO MORAL RECONHECIDOS PELO TRIBUNAL DE ORIGEM.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.755.414 - RJ (2018/0154654-1)
 
RELATOR:MINISTRO HERMAN BENJAMIN
RECORRENTE:AMPLA ENERGIA E SERVIÇOS S.A
ADVOGADOS:JAYME SOARES DA ROCHA FILHO  - RJ081852
  LEONARDO FERREIRA LÖFFLER  - RJ148445
  VINÍCIUS MARTINS PEREIRA  - RJ134616
  ANA FLÁVIA DOS SANTOS RIGOTO FERREIRA  - RJ179845
RECORRIDO:SILVANIA MARIA PESSANHA BARRETO LEITE
RECORRIDO:ROBSON BARRETO LEITE
ADVOGADOS:ALEX DAFLON DOS SANTOS  - RJ095975
  ANDERSON BRUNO MOREIRA DE MORAES  - RJ157979
EMENTA
 
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO  DOS  ARTIGOS  489  E 1.022 DO CPC/2015. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. NEXO CAUSAL E DANO MORAL RECONHECIDOS PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REDUÇÃO DO QUANTUMINDENIZATÓRIO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.

1. Preliminarmente, constata-se que não se configura a ofensa aos arts. 489 e 1.022 do Código de Processo Civil/2015, uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, tal como lhe foi apresentada.

2. Na hipótese dos autos, o Tribunal a quo consignou (fls. 308-310, e-STJ): "(...) A parte ré/1º Apelado alega fato de terceiro, mas ficou amplamente demonstrado ter se tratado de má prestação dos seus serviços, pois não observou os cuidados necessários de manutenção de sua rede elétrica, deixando fios caídos e pendentes que poderiam atingir qualquer pessoa, tendo no caso causado queimaduras em função da descarta elétrica no menor, ora parte autora/1ºs Apelantes. O desserviço praticado pela parte ré/1º Apelado prejudica a prática dos atos da vida civil e provocam aborrecimentos que superam os do cotidiano, configurando dano moral, gerando obrigação de indenizar, independentemente de prova atinente a prejuízo material, pois se trata de dano in re ipsa, com fulcro no artigo 186 e 927, do CC c/c artigo 5, X, da CFRB. (...) No tocante à pretendida redução do quantum indenizatório, este Egrégio Tribunal de Justiça consolidou entendimento de que a revisão do valor da indenização somente é possível quando exorbitante ou insignificante a importância arbitrada, em flagrante violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, nos termo do Enunciado nº 116 do Aviso nº 55/2012 deste TJRJ e o verbete da súmula 343, do TJRJ. (...) Por fim, ressalta-se que este Tribunal de Justiça julgou caso análogo, onde a fornecedora de serviço, ora parte ré/1º Apelado, cometeu a mesma falha. O que demonstra que o total descaso com o consumidor, sendo certo que, além dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, deve o valor da indenização por dano moral ser majorado para R$ 100.000,00 (cem mil reais), para cada parte autora".

3. É inviável, portanto, analisar as teses defendidas no Recurso Especial – inexistência de ato ilícito, ausência de dano moral e nexo causal, e exorbitância do quantum indenizatório –,  pois inarredável a revisão do conjunto probatório dos autos para afastar as premissas fáticas estabelecidas pelo acórdão recorrido. Aplica-se, portanto, o óbice da Súmula 7/STJ.

4. Recurso Especial conhecido parcialmente e, nesse parte, não provido.
 
ACÓRDÃO
 
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça:  ""A Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso e, nessa parte, negou-lhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os Srs. Ministros Og Fernandes, Mauro Campbell Marques, Assusete Magalhães e Francisco Falcão (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator."
 
Brasília, 18 de setembro de 2018(data do julgamento).
 
 
MINISTRO HERMAN BENJAMIN
Relator

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Agências reguladoras têm o poder de fiscalizar, mas não o de legislar


Por Efraim Filho

“O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal”

Artigo 44 da Constituição Federal

A Constituição Federal de 1988 determinou que o Congresso Nacional, formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, é o órgão que detém o monopólio para a instituição de leis de âmbito nacional. Desta forma, são os deputados e senadores que, ainda de acordo com a carta magna brasileira, devem “dispor sobre todas as matérias de competência da União”.

Esta é uma introdução importante ao analisarmos um caso que deve ter seu desfecho definido pelo Supremo Tribunal Federal no início de fevereiro: a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.874), apresentada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que contesta uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2012 que proibiu a comercialização de cigarros com aroma e sabor.

A decisão que os ministros da corte deverão tomar nas próximas semanas é, em última instância, fundamental para que as agências reguladoras possam exercer seu papel na defesa dos interesses dos brasileiros, sem, entretanto, usurpar o papel de outros atores da sociedade.

Uma decisão do STF de 2014 comprova a tese de que o papel da Anvisa não pode se sobrepor ao do Congresso nacional. Ao julgar a ADI 4.954, que dispunha sobre a resolução 328/1999 da Anvisa que vedava a venda de artigos de conveniência em drogarias e farmácias. De acordo com o ministro relator Marco Aurélio Mello, “A circunstância de a Lei federal 9.782, de 1999, mediante a qual foi criada a aludida Agência, ter instituído amplo espaço de atuação regulatória em favor da autarquia não a torna titular de atribuição tipicamente legislativa". Todos os ministros seguiram o voto do relator.

Ou seja: a Anvisa não tem o poder de legislar.

No caso dos cigarros, é necessário ressaltar que a Anvisa possui papel preponderante na fiscalização da produção nacional e, por meio das secretarias de vigilância sanitária nos estados e municípios, garantir o cumprimento da legislação que rege o setor. Mas ela não pode ter o papel de decidir quais ingredientes podem ou não compor o produto.

Este é um tema da maior importância, pois em última instância trata do escopo e dos limites da atuação das agências reguladoras brasileiras. Pode parecer um exagero, mas, caso o STF decida por validar a resolução, o que impedirá que amanhã a Anvisa decida proibir a adição de açúcar nos refrigerantes vendidos no país? Ou que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) decida que os filmes produzidos no Brasil não podem abordar certos temas?

A criação das agências reguladoras no início dos anos 90 marcou um momento decisivo para a modernização da economia do país. Mas é preciso que a decisão dos ministros do Supremo não tenha como efeito a substituição de poderes que, hoje, são regidos pela Constituição de 1988. Caso contrário, poderemos ver em um futuro muito próximo a proliferação de disputas semelhantes em diversos setores, o que com certeza irá contribuir para o aumento da já tão falada insegurança jurídica, um dos maiores desestímulos ao crescimento e ao desenvolvimento do país.