O
princípio da responsabilidade objetiva não pode ser aceito no âmbito
dos atos judiciais porque a atuação do julgador sempre resultará
em alguma perda para uma das partes. Se esse dano fosse indenizável,
todo o efeito dos litígios seria transferido ao estado, causando
verdadeira ‘‘socialização dos prejuízos’’. Assim, a regra ampla
contemplada no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, deve ser
trazida para os limites indicados no seu artigo 5º, inciso LXXV, que
admite a indenização quando o ato é falho (erro na sentença) ou quando
falha o serviço (excesso de prisão).
O fundamento levou o Superior Tribunal de Justiça a não conhecer o
Recurso Especial 1196671 e, por consequência,
manter acórdão
que livrou o estado do Rio Grande do Sul da obrigação de indenizar em
danos morais 27 pretores. Eles foram tachados de incompetentes pelo
desembargador Nelson Antônio Monteiro Pacheco, do Tribunal de Justiça
gaúcho, em acórdão prolatado em 11 de junho de 2004, que encerrou uma
discussão sobre a inamovibilidade da classe.
‘‘Nesse contexto, a
responsabilidade do ora recorrido [estado do Rio Grande do Sul] em
indenizar os danos que teriam sido causados aos recorrentes [pretores]
fora afastada exclusivamente com base na interpretação dada ao
artigo 36, parágrafo 6º, da Constituição Federal, cujo exame é vedado em
recurso especial, sob pena de usurpação da competência atribuída ao
Supremo Tribunal Federal’’, expressou a ministra-relatora, Assusete
Magalhães, em seu voto.
Os pretores — tecnicamente denominados de
juízes togados de investidura limitada — eram admitidos na Justiça
comum gaúcha mediante concurso público de provas e títulos até 1988 —
data da promulgação da Constituição Federal. Em abril de 2013, a Lei
14.235/13, que alterou dispositivos da Lei 6.929/75 (Estatuto da
Magistratura), passou a reconhecê-los como magistrados. Hoje, existem 37
pretores na ativa, cargos que serão extintos à medida que seus
titulares forem se aposentando. O recurso especial que negou a
indenização foi julgado na sessão do dia 17 de junho.
Ação indenizatória
As palavras de Pacheco foram proferidas durante o julgamento de recurso
(70008677809), no âmbito de uma ação que contestou a remoção de dois
pretores numa comarca da Grande Porto Alegre. Naquela sessão,
acompanhando o voto do relator, Pacheco teceu algumas considerações
sobre a atividade de pretor, que também exercera numa comarca do
interior.
Numa das intervenções, dirigindo-se ao representante do
Ministério Público, disse: ‘‘O magistério de Nelson Oscar de Souza
[Manual de Direito Constitucional] aqui reproduzido é a amostra efetiva
deste ‘trem da alegria’ que, então, se patrocinou, porque só é pretor
hoje quem não teve competência para passar nos concursos para juiz de
Direito, isso ninguém de nós pode ignorar. Vossa excelência,
doutor Brusque de Abreu, teve competência para passar no concurso do
Ministério Público’’. Após, dirigindo-se ao advogado dos autores da
ação, que fez a sustentação oral na tribuna da sala de julgamento,
arrematou: ‘‘ (...) Com a máxima vênia, não vejo aí risco de ataque às
garantias da magistratura, pois esses juízes temporários, que, até hoje,
chamo de autoridades judiciárias, não tiveram nunca as garantias,
tiveram sempre as prerrogativas’’.
A manifestação desagradou
profundamente 27 pretores, que ajuizaram ação indenizatória contra o
estado na 3ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da capital gaúcha.
Na inicial, alegaram que o ‘‘detrator’’, de modo inoportuno, considerou
os pretores como uma classe inferior, formada por pessoas incapazes de
passar em um concurso para juiz de Direito. Em síntese, tais palavras
foram proferidas em desprestígio da classe, causando danos aos seus
integrantes.
O juiz Niwton Carpes da Silva reconheceu que as
palavras do desembargador lançadas no acórdão foram ‘‘duras, cruéis e
até desnecessárias’’, mas tiveram conotação menos impactante no contexto
dos fatos. Neste caso, ‘‘a análise deve ser contextualizada e o acórdão
lido na inteireza e na completude’’ — destacou na sentença. É que a
parte da ofensa foi reproduzida da obra do doutrinador Nelson Oscar de
Souza.
O mesmo pode ser dito, segundo Carpes, quando
Monteiro afirmou que faltou competência aos pretores para passar no
concurso de juiz de Direito. ‘‘Se simplesmente examinarmos a afirmação
sob a ótica parcial e torcida de que o eminente desembargador Nelson
Pacheco chamou os pretores de incompetentes, em outra situação, em outra
circunstância, que não um julgamento envolvendo justamente as garantias
da magistratura, se são ou não alcançáveis por essa categoria —
pretores —, a conclusão seria lógica e inafastável de que teria havido
ofensa deliberada e acintosa’’, expressou Carpes.
Conforme o
julgador, o ato de jurisdição, às vezes, agride e machuca, mas qualquer
exegese na interpretação deve ser benéfica ao estado, pois é difícil
julgar sem desagradar uma das partes ou mesmo terceiros. Assim,
encerrou, a ‘‘interpretação benevolente’’ e a ‘‘exegese restritiva’’
resultam da leitura atenta do artigo 133 do Código de Processo Civil
combinado com os artigos 41 e 49 da Loman (Lei Complementar 35, de
1979). Afinal, todos os dispositivos destacam, sem exceção, hipóteses
restritas de responsabilização funcional e civil do magistrado na
prestação da jurisdição.
Recursos
Inconformados, os pretores apelaram à 9ª Câmara Cível do TJ-RS. Em
julgamento realizado no dia 17 de dezembro de 2008, a maioria do
colegiado firmou entendimento de que o magistrado não deve ir além dos
limites do caso concreto, tecendo impressões pessoais sem relevância
para o desfecho da causa em julgamento. ‘‘Não é lícito ao órgão
jurisdicional, por meio de quem lhe representa, fazer comentários
atentatórios à dignidade de quem quer que seja — acobertado pelo escudo
da independência e da soberania” —, sob pena de por isso ter de
responder civilmente’’, registrou o acórdão.
Para a
desembargadora-relatora, Marilene Bonzanini, a palavra ‘‘competência’’
foi empregada em sentido pejorativo e aviltante por parte do
desembargador. ‘‘Compreender de forma diversa, em que pese possível,
significa tratar com demasiada complacência inaceitável manifestação’’,
expressou no voto. Reconhecida a lesão aos direitos de personalidade da
classe dos pretores — expressos no artigo 5º da Constituição —, a
9ª Câmara Cível arbitrou o
quantum indenizatório em R$ 6 mil para cada autor da ação.
Como
a decisão se deu por maioria, o estado entrou com embargos infringentes
no 5º Grupo Cível — que reúne a 9ª e a 10ª Câmaras Cíveis —, pedindo a
prevalência do voto divergente da desembargadora Íris Helena Medeiros
Nogueira, que manteve a sentença de improcedência.
Reunidos
em sessão de julgamento no dia 15 de maio de 2009, os cinco
desembargadores decidiram, em sua maioria, acolher o voto divergente,
que confirmou na íntegra a sentença do juiz Niwton Carpes. Para o
relator, desembargador Paulo Kretzman, já aposentado, a responsabilidade
do estado pelos atos judiciais deve ser reconhecida somente nas
hipóteses previstas em lei, como sinalizam diversos precedentes julgados
pelo Supremo Tribunal Federal.
Mais uma vez
derrotados, os autores ingressaram com recurso especial no Superior
Tribunal de Justiçam em 6 de julho de 2010. A ação indenizatória foi
analisada, em definitivo, pela ministra Assusete Magalhães, na sessão de
17 de junho de 2015.
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