quarta-feira, 7 de maio de 2025

"Quase Contrato" na Administração Pública.


A maioria das obrigações firmadas entre as partes decorre de um acordo de vontades, produzindo os efeitos jurídicos daí resultantes. Assim que se concretiza o pacto, surge a obrigação entre as partes e se forma um contrato, que pode ser formal ou não. No entanto, nem sempre as obrigações têm origem nesse tipo de acordo. Elas podem surgir de um vínculo do qual uma das partes sequer tinha conhecimento. Por exemplo, imagine-se um devedor que, acreditando ser determinada pessoa sua credora, efetua o pagamento a ela. Posteriormente, descobre que a pessoa paga não era a verdadeira credora e, por isso, exige a devolução da quantia. Nesse caso, quem recebeu o valor tem a obrigação de restituí-lo, pois ninguém pode enriquecer-se injustamente à custa de outrem. Surge, então, a pergunta: qual é o vínculo jurídico que permite exigir a devolução? A resposta está no princípio de que ninguém pode se beneficiar injustamente do prejuízo alheio. É a partir dessa premissa que nasce o chamado quase-contrato.

Para compreender melhor essa figura jurídica, vale considerar algumas definições doutrinárias. Segundo Cretella Júnior (2010, p. 207), o “quase contrato” é “o ato lícito e voluntário que torna seu autor credor de outra pessoa, sem que tenha havido prévio acordo de vontades entre ambas”. E prossegue Cretella Júnior (2010, p. 207): “segundo a célebre definição de Teófilo (Ad Institutas, 4, 5), é o ato lícito, gerador de obrigações que, diferentemente do contrato, não exige o consentimento das partes, mas, como o contrato, é sancionado por uma ação reipersecutória”. Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p. 640) complementa afirmando que “os quase-contratos seriam uma fonte obrigacional decorrente de ato voluntário em que sujeitos de direito se ligam como se fora por vínculo contratual, sem que, todavia, tenha ocorrido acordo de vontades que caracteriza o contrato”. 

No campo do Direito Civil, os quase-contratos abrangem situações como a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa e a repetição do indébito. Já no Direito Administrativo, apenas a teoria do enriquecimento sem causa e a gestão de negócios foram objeto de estudos mais aprofundados. Conforme leciona Bandeira de Mello, “no Direito Administrativo compreenderiam a gestão de negócios (negotiorum gestio) e a ação de restituição do indébito (actio de in rem verso), cujo objeto se incluiria no gênero que proscreve o enriquecimento sem causa. Sem dúvida, este último é a principal figura, e merece uma particular referência” (Mello, 2006, p. 640).

Desse modo, a atuação de terceiros que realizam atos ou efetuam despesas em benefício do Poder Público e da coletividade — mesmo que decorrentes de atos posteriormente anulados ou de contratos prorrogados sem as formalidades legais — pode gerar uma situação jurídica que impõe o dever de indenização. Trata-se da formação de relações obrigacionais lícitas e unilaterais, com efeitos vinculantes entre as partes. 

Nesse contexto, compreende-se que a doutrina do “quase contrato” na Administração Pública refere-se à ideia de que, em determinadas circunstâncias, a lei impõe obrigações recíprocas análogas às contratuais, mesmo na ausência de um contrato formal. Essas obrigações fundamentam-se em princípios como a boa-fé, o enriquecimento sem causa e a proteção da confiança legítima. Embora não haja um vínculo contratual propriamente dito, estabelece-se uma relação entre o particular e o Poder Público sem que tenha havido contraprestação. Um exemplo clássico é o da requisição administrativa: embora não exista contrato, a lei impõe o dever de indenizar. O mesmo raciocínio aplica-se a hipóteses de ocupação temporária de imóveis particulares ou a certos atos preparatórios de licitação que exigem investimentos por parte dos particulares. Nesses casos, configura-se uma situação de “quase contrato”, impondo-se à Administração Pública a obrigação de ressarcimento.

Ressalte-se, contudo, que a aplicação do conceito de “quase contrato” à Administração Pública é limitada e objeto de controvérsia, especialmente em razão da exigência constitucional de licitação para a maioria dos contratos administrativos (art. 37, XXI, da CF/88), bem como do princípio da legalidade estrita, que orienta toda a atuação administrativa.

Por fim, reitera-se que o Poder Público tem o dever de indenizar aquele que, por sua iniciativa, contribuiu para o acréscimo do patrimônio público. Isso porque o enriquecimento sem causa é inadmissível, e, como princípio amplamente reconhecido, ninguém deve se beneficiar do prejuízo alheio.


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