Em tempos de
crescimento de população carcerária e superlotação de presídios, naturalmente
ressurge a discussão acerca da privatização ou terceirização de presídios.
Em 1834, Jeremy
Bentham foi o primeiro autor a propor a concessão de contrato de administração
de penitenciárias a fim de satisfazer interesses econômicos privados. Tal idéia
não prosperou, tendo voltado à baila, novamente, nos anos 80 do século passado
durante o Governo Reagan. Nos últimos 25 anos, a população carcerária americana
cresceu continuamente (2,3% em 2007), chegando ao astronômico patamar de mais
de 2.300.000 pessoas encarceradas (um em cada 99 adultos está preso). Tal
fenômeno criou um sistema, chamado por Nils Christie, de a “indústria do
controle do crime”. Cadeia é um negócio — e dos lucrativos —, o que talvez
explique o interesse em se continuar a encarcerar pessoas por fatos muitas
vezes irrelevantes. Cá como lá, o interesse empresarial na construção de
cárceres privados atende a uma demanda. Ou, se preferirmos, a demanda é criada
por esses interesses. Se o produto é o resultado dos fatores, cuja ordem é
irrelevante, o fato é que temos mais de 430.000 presos nas penitenciárias e
cadeias do Brasil. Isso dá um índice de 227 presos por 100.000 habitantes
(conforme dados do Depen, consolidados em julho de 2007).
Nos EUA, duas
empresas (Correction Corporation of America e Wackenhut Corrections
Corporation) controlam dois terços do “mercado” de encarceramento privado. E,
por óbvio, o que é bom para eles haverá de ser bom para nós. Ocorre que a
situação não é tão simples, esbarrando em questões legais, além das questões
éticas. A diferença entre Brasil e EUA é que ao contrário do que ocorre lá, não
se admite por aqui uma execução penal que não seja jurisdicionalizada. Isto faz
com que, legalmente, somente as atividades de execução material possam ser
privatizadas. No Brasil isso sempre existiu em maior ou menor escala. Qualquer
um sabe que em uma pequena cadeia pública do interior do país, quem fornece a
comida da cadeia é a dona da pensão ou um restaurante da cidade. A
inviabilidade para se fazer comida em pequenas instituições carcerárias obriga
o Estado a comprá-la de terceiros. Tempos houve em que o encarceramento era
cumprido na parte térrea, quando não nos porões, dos prédios das Câmaras
provinciais de representantes e que não havia comida dada pelo Estado ou por
empresas. Ficavam os presos dependendo das esmolas daqueles que passavam pelas
ruas. Mas ao menos as vicissitudes daqueles que estavam no andar de baixo se
constituíam em um alerta para aqueles que passavam pelo andar de cima.
De outra parte,
as atividades inerentes à execução, sejam elas em sentido amplo ou estrito
(jurisdicional), não admitem privatização. E esbarram em problemas éticos.
“Numa penitenciária privatizada, por exemplo, em que o preso é convertido
em mão-de-obra compulsória, de que modo enquadrar seus deveres, como condenado
judicial, com seus direitos trabalhistas, enquanto operário? De que maneira
enquadrar esses direitos e deveres previstos em lei com as normas internas de
segurança impostas pelas firmas de vigilância e voltadas para os ganhos de
produtividade? Qual o interesse dessas firmas, cujas ‘fábricas’ podem enfrentar
problemas de flutuação de mão-de-obra, em ressocializar os presos que se
revelarem excelentes trabalhadores em suas linhas de montagem?”(1)
Se a execução
penal é uma atividade jurisdicional e, como se sabe, a atividade jurisdicional
é indelegável, por certo que a administração penitenciária também o será. “Ao
princípio ético da liberdade individual, corresponde a garantia constitucional
do direito à liberdade. Essa garantia reconhece, no âmbito da ordem jurídica, o
comando ético segundo o qual não será moralmente válido a um homem exercer
sobre outro qualquer espécie de poder, que se manifeste pela força. A única coação
moralmente válida é a exercida pelo Estado através da imposição e execução de
penas ou outras sanções. Portanto, o Estado, seja do ponto de vista moral, seja
do ponto de vista jurídico, não está legitimado para transferir a uma pessoa,
natural ou jurídica, o poder de coação de que está investido e que é
exclusivamente seu, por ser, tal poder, violador do direito de liberdade.”(2)
Evandro Lins e
Silva acrescentava um argumento prático curioso. Imagine que uma organização
criminosa queira lavar dinheiro através da exploração da atividade privada de
administração prisional. Não seria um risco o Estado transferir à empresa a
mão-de-obra para tal empreendimento privado de lavagem de dinheiro?(3) Não
ficaria o Estado vinculado a uma confusão evitável?
O fato é que os
presídios privados só dão lucro na exata medida em que existe um mecanismo
regulador estatal. Os operários são selecionados e trabalham somente sob a
ameaça de retorno ao presídio público. Penitenciárias públicas e privadas são
modelos simbióticos. A suposta qualidade de uma depende da suposta ineficiência
da outra. O sistema privado só se viabiliza economicamente se houver a
ineficiência do público. A pergunta final passa a ser: é razoável que, para a
satisfação dos interesses de alguns poucos presos, tenhamos que sacrificar
todos os demais?
Notas
(1) FARIA, José
Eduardo. Privatização de Presídios e Criminalidade: A Gestão da Violência no
Capitalismo. São Paulo: Max Limonad, 2000, pp. 16-17.
(2) ARAÚJO Jr.,
João Marcello (org.). Privatização das Prisões. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995, pp. 12-13.
(3) Op. Cit., p.
20.
Nenhum comentário:
Postar um comentário